quarta-feira, 24 de abril de 2024

Apenas alguém


Algo perdura apesar dos anos.
Reenceno os mesmos momentos
Como se uma meditação fosse,
Mas foi eu que fechei as portas
E fui eu que voltei-me para o Oeste.

Lembranças e palavras ainda reverberam
Silentes e solenes, rasgando as pretensões.
Algo belo e importante ficou para trás
E por mais que o mundo gire,
Que os meus pés se despeçam,
Que tenha feito sentido partir,
Algo de mim ficou para trás.

Estou disperso no tempo e no espaço.
Não encontro unidade no sentir.
Por mais que as partes façam sentido,
O todo é estranho e alheio sem você.

Eu privei-me do meu lugar
E agora não sei mais aonde estou.
Espero que os anos tenham lhe sido gentis,
Mais do que eu poderia ser.

Não és estrela idealizada,
Nem dista em horizontes impossíveis.
És algo concreto feito abstrato
E agora lembrado com dor.

Apenas um alguém que um dia conheci.
Apenas um alguém que um dia me conheceu.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Tétis

Os pulmões se reinflam após o interstício do silêncio.
Os alforges finalmente ao chão.

Linho branco recobre os móveis.
A poeira pode sempre ser varrida
e os cacos ainda podem ser colados.

O possível brota timidamente dos cantos.

Calejadas mãos repousam sobre o leme.
A tempestade se cala lá fora.

Por anos navegando uma rota errada
Usando os mapas e os meios
de algum outro alguém.

O oceano é vasto o suficiente para nele se perder
e o oceano é vasto o suficiente para nele se encontrar.

As ondas não dissuadiram Odisseu.

Vazio Celeste

Rompido o fio, desfaz-se a trama,
Uma pluralidade desconexa de pessoas,
Reunidas apenas por uma mesma origem helicoidal.

Sentimo-nos tentados a enaltecer o passado,
ressignificar a inospitalidade do presente,
mas na nua realidade das coisas
houve beleza na mesa posta do café,
nos dedos tão longevamente entrelaçados,
no chá que pontuava as noites.

A horta e as samambaias entreolham-se em silêncio,
Os nossos olhos agora molham os dias.

Albedo

A alteia negra e o rouxinol,
Ambos engolfados pela escuridão,
Ambos indistintos no albedo
que reluta em revelar a luz.

Nos fragmentados arredores
e por desconectados corredores,
aflora o mimetismo incauto
dos espelhos distraídos.
Distorcem a natureza elíptica das coisas.

Eu acredito no nada.
e nas suas convicções estéreis
e nos reduzidos limites do possível.

... mas é a ficção que estrutura a vida,
alinhando trilhos invisíveis em direção ao amanhã.

Ancorado no discernimento,
Um a um os malabares caem ao chão.

Como começar a contar novas estórias
quando todos os nossos livros estão em branco?

Splendor Solis

Os dedos se fecham sobre o arame farpado
Desde a plácida Aurora rubra
Até a inquietude Magenta do Ocaso.

Com as costas dadas para o cálido Sol,
Procuro estrelas na escuridão das sombras.
Eu sou a face tímida da Lua
Contemplando a fecundidade sóbria da Noite.

Os deuses sussurram em nossos ouvidos,
mas não é possível os ouvir por entre as palavras.

Érebo

Tu afogas todo o brilho das estrelas
ou meramente as esconde por entre as dobras do seu manto?

Teus braços esticados resvalam nos confins do universo.
Dedos enegrecidos com a tinta das partituras celestiais.
Um artíficie perenemente oculto, mas ainda assim presente.

Agora confinado nas profundezas do Tártaro
e banhado pelas águas do Esquecimento.
Uma Força colossal latente
tão ignota de sua magnitude cósmica.

Tu és o outro lado dos buracos negros,
a matéria escura que encadeia as equações e cânticos.

Ó grande deus adormecido,
Consorte da traiçoeira noite,
Pai verdadeiro do Dia,
De tua amplidão desoladora,
brotam as raízes do possível!

Que o meu silêncio seja a sua palavra.


Dragas

É o peso que sulca os caminhos e discerne as direções.
O chão carece do sentido que no horizonte abunda.

Dentro dos gravetos existe a raiz efêmera do fogo,
mas ainda sim cedem ao apelo das botas
com seu marchar decidido e sua violência orquestrada.

É a tensão que nos remete do impreciso para o exato,
como se as cordas de nossa própria existência
fossem por um demiurgo puxadas
para nos afinarmos ao uníssono desespero do mundo.

A escuridão sucede o silêncio.
Ausência e apatia amalgamadas
de forma singularmente perene.

Em meio aos nossos pesares privados
suplicamos por meio do subtexto e do silêncio
por uma plateia e por aplausos
que validem nossas dores
e os nosso tantos amores
tão estupidamente burgueses.

Nós somos o sal e somos Cartago.
Somos o intransponível Rubicão transposto
pelos pés de um melhor César 
que há de um dia vir.