segunda-feira, 25 de março de 2024

Ōkeanós

 

Braçadas largas contra a espuma
E o sal que fustiga-me a pele.
Furando ondas como uma nau
Na aprumada rota que me impele.

Eu estou sendo puxado para longe
Por marés indivisíveis
E horizontes obscuros.
Tudo que posso fazer é nadar.

Existe algum conforto no conflito
Entre o eu e o meio.
É possível descobrir-se
Nos espaços vazios
Entre o partir e o chegar.

Mas o fundo do oceano
Está repleto de estátuas,
Todas de braços abertos,
Silenciosas, a nos esperar.

Respire.

sexta-feira, 22 de março de 2024

Óbice


Estamos ambos sentandos à mesa,
Mas somente você espera
Pelo quieto comensal que não viria.
Mesmo posto seu prato
E anunciado seu nome,
A cadeira permaneceria vazia.

A sinfonia das moscas
Não exime ninguém.
Minhas parvas palavras
Foram todas emudecidas.
Nosso silêncio é tão desigual!

Dos pratos, só restam os cacos.
Da comida, apenas esporos.
A toalha foi por traças desfeita,
Mas os talheres permanecem
Em rijas mãos atentos.

O contido desejo de destruir
É o fundamento secreto
De toda a gastronomia.

terça-feira, 19 de março de 2024

Vinha Velha


Vinha velha, por demais entrelaçada, Conectou-se ao âmago do mundo. Já não saberia mais ser só Caso novos ventos a acariciassem silentes Ou fazendo uivar os montes.

Secas ou tempestades Não a separariam dos teus Mesmo se a luz lhe chegasse filtrada Por cantos impensados Ou direções oblíquas. És a cola que constitui o todo.

Vinha velha, venha invadir estas paredes, Redefinir as dimensões que delineiam este lugar. De muitos, um. Do nada, tudo. Emoldurando a nossa história, Cicatrizando no concreto as rachaduras Para finalmente bendizer em verde O que um dia fora a nossa triste alvura.

Vinha verde venha.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Salt


My admiralty ends here,
Of offices and titles deposed.
Worn out clothes that no longer fit.

The cell door lies open.
By light and warmth caressed,
But I still wouldn't know to smile.

I admire the boats on the horizon
Carrying me away without leaving,
Pleased by their distances
Allowing me to be as small
As I now need to be.

Undefined are the state of things
Amidst an ocean of possibilities.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Sal


Termina aqui meu almirantado.
De cargos e títulos deposto,
Roupas velhas que não me cabem mais.

A porta de minha cela está aberta.
Raios cálidos me afagam,
Mas ainda não saberia sorrir.

Admiro os barcos no horizonte
Transportando-me pra longe sem partir.
Estas distâncias me agradam,
Permitem-me ser pequeno
Como agora preciso ser.

Indefinido o estar das coisas,
Um oceano de possibilidades.



quarta-feira, 13 de março de 2024

Sementes & Bagaços

 

Reluzente pomo paira
Indiferente em alto galho.
Transfixado pelo olhar,
Desejado pela boca.
Muito aquém das mãos.

No chão jamais seria
Igualmente belo,
Mas é firme ao toque
E doce nos lábios.

terça-feira, 12 de março de 2024

Théos

 

Eu sinto Vossa falta
Por mais que temesse
Tua presença invisível
Indicando-me o Norte,
Mesmo quando não pensava seguí-lo.

Estampado pelos ritos e gestos
Ensaiados por tantos tios e avós,
Fazia-Se tangível,
Não no esplendor do gênese
Ou no furor do apocalipse,
Mas nas pausas reverentes
Floreando o desespero.


Eu vi a Tua sombra pairando larga
Nas ante-salas e azulejos de hospitais,
Lembrando-me de minha pequenez
Enquanto barganhava-Lhe por vida,
Primeiro décadas,
Depois dias.


Deixaste um buraco
Largo demais para ser preenchido,
Comprometendo os alicerces,
Arruinando as fundações.
Entretanto, eu ainda olho para o abismo
Esperando ser visto ou repreendido.

Eu (in)vejo a inocência
Dos que ainda acreditam.
Continuo desconhecendo
O Vosso nome e o Vosso semblante,
Vossa inteira teologia de retalhos.
Ainda sim,
Tende piedade de nós.

Narcissus and the Cloudwalkers


I envy the lightness of the cloudwalkers,
The manner in which their steps
Leave no further marks upon the ground.
They invade the unseen stealthily,
Never truly departing from it.
Entering walls like doorways,
Passing through unnoticing,
Unseen themselves.
They stand out like shadows,
Gliding gently over surfaces.

Lives brushed with turpentine,
Transforming harsh lines
And such precise boundaries
Into whispers and impressions
That resonate farther than the real.

The symphony of stars is reflected
In the placidity of a thousand lakes.
Depth and poetry elude me.
All I see
Is merely my reflection.


segunda-feira, 11 de março de 2024

Narciso e os Nefelibatas


Eu invejo a leveza dos nefelibatas
E a forma em que seus passos
Não deixam mais marcas pelo chão.
Invadem sorrateiramente o invisível
Sem dele nunca verdadeiramente sair.
Adentram nas paredes como portas,
Atravessando-as sem a nada perceber
Ou ao menos serem percebidos.
Sobressaem-se como sombras
Planando leve sobre superfícies.

Vidas pinceladas com aguarrás,
Transformando linhas duras
E limites tão precisos
Em sussurros e impressões
Que reverberam mais longe que o real.

A sinfonia das estrelas é refletida
Na placidez de mil lagos.
Profundidade e poesia que me escapam.
Tudo que enxergo
É apenas meu reflexo.

domingo, 10 de março de 2024

O Instinto de Cuidar



Um fio, de intrincada tapeçaria, termina aqui,
Deixando em seu desvelar
Padrões incompletos,
Portas não abertas e
Palavras em brumas suspensas.

Como um afresco retratando nossa origem,
Um mesmo tecido conecta-nos
Do primeiro organismo unicelular
Aos prazeres e pesares de nossos pais.

A partir de combinações e reconfigurações
De 4 parcas cores
Pulsa o desejo de se propagar
Por entre o tempo e o espaço,
Uma sinfonia de gerações e genes.

Meu fio termina aqui.
Eu me recuso,
Por repulsa ou respeito,
A participar de nossa
Corrida em direção às estrelas.
Eu não passarei à diante
O pecado de meus pais,
Mas na sombra de nossas escolhas,
Sou assombrado pela diafaneidade
Do instinto de cuidar.

Queria poder erigir muros
Em torno das coisas frágeis,
Sem, entretanto, aprisioná-las.
Protegê-las sob uma claridade rara
Para que, quando regadas,
Desabrochassem também
Em pleno esplendor.

Estar presente, solene ou silente,
Para testemunhar os dias
Que um dia não seriam mais meus.

Documentar os passos,
Cartografar-lhe novas alturas.
Tudo tão natural e próprio,
Mas escolhi meu fio terminar aqui.

O infinito, de ventres sábios é parido.

quinta-feira, 7 de março de 2024

Tiossulfato de Sódio


A dor fantasma dos amputados
É mais memória do que violência.
A gelatina de prata, insolente,
Suspende seus cristais contra a luz
Travando suas próprias batalhas
Em meio aos campos do lembrar.

É preciso erigir os pavilhões do passado
Em meio à turbidez do presente.
Suas pesadas portas podem sempre
Ser abertas quando o momento clama
Por faróis altos e olhos claros
Em meio as tormentas do devir.

Ecos de vozes emudecidas
Rodopiam como dervixes
No desnudar de meus dias.
Eu sou feito de tempo,
Como um suéter tricotado
Em salas de espera
Onde o nada transpira
O suor de sua monotonia.

Fotos velhas,
Vergonhosamente escondidas,
Desbotam em carteiras,
Casacos ou gavetas.

quarta-feira, 6 de março de 2024

Leitmotif


A luz do Sol nascente,
Pelo vidro e pelo trinco filtrada,
Incide doentia,
Quase monocromática.

Sombras demasiadamente oblíquas
Agora deitam-se sobre os móveis.
Filetes d'água viram rios nas paredes
E em mim.

Nietzsche estava certo
Sobre o Eterno Retorno.
Vivemos nossas vidas
Como pequenas variações
Sobre um cansado tema,
Trilhando os mesmos sulcos
Formados por nossos pés
Ora relutantes, ora resignados.
Nunca aprenderíamos nada
Ou assim preferimos pensar.

O que mais há além disso?
Além dessas paredes
De concreto ou pele
Erigidas para nos proteger
Da erosão dos dias,
Dos cortes pelos
Ponteiros causados,
De nossas trajetórias tão desalinhadas
Pelo amargo laudano do lembrar.

O que mais há além disso?
O estrondo do trovão.
O relâmpago rasgando os céus
Para no chão encontrar morada.
O vento destruindo velhas barreiras.
Os mares tomando de volta suas costas.
Pedras quebrando janelas.
Mãos sangrando em meio aos cacos.
Notas claras encerrando óperas de silêncio.

O que mais haveria além do aqui?

sexta-feira, 1 de março de 2024

O Deus das Vinhas


O Deus das Vinhas está embriagado,
Dormindo no sofá
Entre cacos e vidros quebrados.

O Deus das Vinhas está embriagado,
Ele não sabe mais dançar,
Apenas vaga para um ou outro lado.

O Deus das Vinhas se olha no espelho
Sem reconhecer-se mais.
Suas roupas maltrapilhas,
De vinho e mijo manchadas,
Já não lhe cabem com a glória
Que já couberam-lhe
A muitos anos atrás.

O Deus das Vinhas está embriagado
E ninguém adora-lhe mais.

O Deus das Vinhas rancoroso,
A tudo e a todos julga
Sem nunca imputar-se culpa
Por seus desígnios dolorosos.

O Deus das Vinhas,
Tão desprovido de começos,
Está eternamente preso
Em seu podre ruminar.

O Deus das Vinhas está embriagado.
O Deus das Vinhas está novamente embriagado.