terça-feira, 15 de outubro de 2024

Ukemi


As brumas se dissipam no sopé das montanhas.
Pirilampos se refugiam ao primeiro vestígio do dia.
Nenhuma sereia habita nestas costas.
Não há mais espaço para sonhar.

A luz do dia incide plena e dura
revelando a dimensão verdadeira da vida.
Algumas coisas se apequenam
enquanto outras se agrandecem.
Tudo está meio fora de lugar.

Varro a poeira dos cantos.
Tiro os detritos de casa.
Guardo-me em tantas caixas.
Há tanto de mim para me livrar!

As janelas estão todas abertas.
Minhas malas foram todas desfeitas.
Nunca tive meus olhos mais claros.
Toda dor que se leva no peito
há de um dia passar.

Eu aceito a lição das cicatrizes
e abraço a cumplicidade do comedimento.
Nunca estive tanto aqui como estou agora.
É preciso saber se levantar.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Jasmins


Pelas janelas da sala,
pelas frestas da porta,
o jasmim invade a casa
enquanto espero o seu chegar.

Está tudo quieto aqui dentro
e tudo calmo lá fora,
os carros passam todos lentos
enquanto espero o seu chegar.

do trabalho que te engrandece,
com as meninas que adora
ou mesmo com as contas do mês,
espero ansioso o seu chegar.

Para que eu possa encerrar o dia
com o calor de sua companhia.
És meu porto, minha litania.
Eu mal posso esperar.

Tudo pode ser mais leve,
juntos caminhamos longe.
O jasmim há de sempre ser
o arauto de teu chegar.

domingo, 13 de outubro de 2024

Epidauro está em ruínas


Meus versos saem tortos.
As estrofes não traduzem
a realidade do sentir.

Erijo fachadas resistentes,
imagens e metáforas convincentes
neste amplo anfiteatro a ruir.

Escuto ecos de meus passos,
uma gagueira em meu guiar.
Revisito os velhos traços,
eu preciso me libertar.

Estou sozinho e nú no palco,
tão terrivelmente exposto,
um caminho invisível calco.
O eu nunca é transposto.

Minhas palavras belas e frias,
escrevo-as como um meio, não um fim,
mas as cadeiras estão todas vazias.
Não há ninguém aqui além de mim.

Pesares e amores individuais,
por mais ostentosos que sejam
jamais alcançam alturas universais.

Os versos dos outros não me comovem,
Rimas fáceis não me alvejam mais.
São minhas as palavras que destroem.

Epidauro está em ruínas.
Eu estou também.

Canções


Os caminhos podem ser retrilhados
e o pó removido dos cantos e dos móveis.
É possível consertar o que se quebrou
e suportar o peso das lições aprendidas.

Estas janelas serão abertas novamente
Para felicitar o resplandecer de um novo dia.
Ainda que esteja escuro lá fora,
são estas as canções que nos alegrariam.

Pontuando a solidão como vaga-lumes na noite,
Sinalizando a delicadas rota das manhãs,
O débil dedilhar das cordas
evocam as vozes que, frias, se emudeceriam.

A música constrói pontes divergentes que ligam
O ocaso à aurora e o que foi ao que seria.

O cheiro do jasmim invade a casa
por entre os vidros quebrados
e por entre as estantes vazias.
Os caminhos podem ser todos retrilhados
Sob o beijo suave do nascituro dia.


sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Resplendor


Sem que soubéssemos
tudo era permeado de graça.
Nossas brincadeiras juvenis,
o contagiante êxtase da vitória,
a solidariedade árdua na derrota.
A infância em todo seu furor.
Tínhamos certeza de que tudo estaria bem.

Havia cumplicidade em nossos andares
mesmo quando invadíamos as ruínas do abatedouro
ou quando subíamos nos caminhôes e nos sujávamos de terra.
Pedalávamos muito mais longe do que podíamos.
Nossos carrinhos de rolimã invadiam velozes o trânsito.
O estrondo da pólvora era a raiz do sorriso.
Corríamos sempre sem camisas na chuva.
O mundo ainda era vasto e repleto de mistérios.

Hoje, velho, revisito as ruínas da infância.
A calçada onde escrevíamos nossos nomes.
A única parede que da casa amarela restou.
Os velhos muros que costumávamos pular.
O grande barranco em frente a cajazeira se apequenou.

Apenas os trilhos continuam os mesmos,
sempre paralelos ao rio,
sempre transportando minérios e mineiros.
Eu os observo do alto da estreita passarela
com a certeza de ter perdido algo inominável.

Eu nunca hei de voltar para as ruas que chamei de lar
quando eu era apenas Daniel do morro do  CESPE,
aluno do colégio Lafaiete,
neto de Maria Celeste
que a cidade inteira alfabetizou.
Eu hoje ando nos metros do Rio,
mas não sei para onde vou,
tampouco sei quem aqui sou.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Cantus Firmus

 

Eu sou a sombra que se deita no Oeste.
Sou o vento que desfia os dias.
A gota que desbasta a pedra.
O silêncio da feitiçaria.

De meus passos brotam árvores.
Minhas mãos afagam os vales.
Meus olhos são duas estrelas frias.
O meu riso é o trovão.
Minha pele é feita de noite,
minha barba de escuridão.
Minhas costas suportam as dores
de todos inícios e da dissolução.

Minhas veias estão cheias luzes.
Meu coração aprisiona canções.
Minha cabeça toca as nuvens.
Meu silêncio é preenchido de orações.

Eu estou muito além de mim.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Em Ilhas


O sol, a areia e o sal ressecam os lábios.
Os destroços são levados pela costa,
vigas e velas já não servem seu propósito.
O fim ressignifica as coisas.

A violência transfigura-se em sustento.
O fogo transmuta-se em morada.
Os dias são contados em gotas.
A noite já não assusta quando estamo sós.

Tento decifrar qual o arranjo de palavras
permitiria-me ser finalmente visto.
Palavras doces, ásperas ou indiferentes
não sensibilizam o distante céu -
nenhum avião passaria por aqui.
Escrevo com areia e pedras
poesias para o horizonte,
sussurros segredos para o vento.
Minhas entranhas estão todas expostas.

Arremeso minhas palavras ao mar
em garrafas que certamente hão de se quebrar.
A água borraria minha letra,
As ondas me roubariam a nuance.
As pedras privariam-me de toda coerência.
Só ruído e estática chegariam
nas areias da praia em que queria estar.

Toda vitória é uma ilha.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Coágulos



Não quero mais habitar em meus versos.
Algo em mim há de mudar.
Não quero revisitar estas imagens rotas
formando um mosaico impreciso de mim.
Minhas palavras são afetadas e tortas.
Eu quero colorir além das linhas.

Faltou-me o papel e por isso escrevi em pele.
Faltou-me a tinta e por isso escrevi com sangue.
Eu estou do avesso agora.
Uma criatura transparente.

Não quero mais habitar nos meus versos,
tampouco quero ler as rimas fáceis
ou aconchegar-me em palavras doces.
Quero resgatar o inominável, o difuso e o perene,
dar-lhes forma, algo mais que o vácuo,
capturar o trovão como somente o ferro faz.

Meus olhos se aleitam como um oráculo.
Eu vejo terras e povos distantes.
Paisagens longínquas visitadas por meus pés.
Céus sangrando impossíveis cores.
Afeto benfazendo os dias,
mas meus lábios permanecem suturados,
minha pena não se endireita.
Eu ando por entre ruas que não me pertencem mais.

Eu escrevo meu nome nas paredes,
Talho-o em todas as portas.
Sussurro-o aos quatro cantos,
mas não consigo encontrar-me.
Não sei se padeço de um fazer poético
ou apenas uma isquemia.

sábado, 5 de outubro de 2024

Interregno


A coroa está guardada.
Cetro e manto acumulam poeira.
O trono clama por um alguém
que preencha a vastidão do palácio.
O eco se afoga no silêncio
de um único nome entoado.

As trombetas aguardam enferrujadas.
Os portões dourados já não refletem luz.
As estradas estão livres.
Os tributos foram todos pagos,
mas falta algo aqui.
Um arauto certamente há de vir.

Os pássaros cantam nas ruas vazias.
Suas asas cortam sóbrias o cerúleo céu.
Todas as torres estão em vigília.
As flores murcham como pequenos lamentos.
Faz-se silêncio nas catedrais.

Os dias se multiplicam.
As vinhas tomam as paredes.
Os sinos rachados se calam.
Todos os arcos estão quebrados.
Todas as flechas foram disparadas.
A natureza toma-nos as ruas.

Um doce cervo é finalmente
coroado conquistador e rei.
Vida longa ao nosso rei!

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Em Mastros Desatados


O vento permeia tudo.
O Sol rasante evapora as palavras de nossos lábios.
É tudo sal e distância.
Barcos vem ou vão sem nunca retornar.
A imensidão azul fascina e apequena.

Que culpa tem as sereias de aqui cantarem?
Nenhuma cantilena compele alguém as águas,
nenhum seio rijo entorta-nos o Norte.
A rota é por escolhas formada.

Penélope em Ítaca também cantou
por vinte anos sua canção
sem que alguém sequer a ouvisse.
Se Penélope estava só,
as sereias também estão.
Ninguém há de eternizar suas histórias.

Odisseu enxergou somente o que queria.
Imputou virtudes e vícios onde somente existia ardor.
Seja no preciso mármore de Ítaca
ou num falho atol isolado,
todos ansiamos por laços,
Por correntes que nos impeçam de sermos levados
pelos lentos passos da procissão dos dias.
Todo abraço é uma âncora.
Todo beijo uma alforria.

Antecâmaras


Halicarnasso tremeu e ruiu.
O farol de Alexandre está sob as marés.
O Colosso de Rodes deitou-se na costa.
Somente a sóbria pirâmide restou.

Sua superfície é áspera, impiedosa até,
pois ainda guarda mistérios e segredos
na retidão de seus longos corredores.

Cada parede é um livro,
cada centímetro uma prece.
Uma morada construída de pedras e palavras.
História entalhada na pedra,
a pedra sustentando os anos.

Do lado de fora,
Tudo é areia, vento, esquecimento e vida.
Minhas ruínas a florir.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Novos Colossos


Nas costas bravas de Rodes,
o velho colosso foi novamente erigido.
Seus setenta cúbitos de altura
parecem entre névoas se avolumar.
Com lança e tocha em riste,
protege as águas deste preamar.

Quando o sol espanta as nuvens,
sua brônzea pele irradia sua presença
para muito além das imperdoáveis milhas.
Mesmo distante é difícil não o ver
reluzindo sereno, algo mais que belo,
apequenando os navios a partir ou chegar.

Diante de seus pés nunca me senti tão só.
Suas pálpebras não se mexem,
seu sorriso estático é quase um arremedo.
Ainda que se sustente, seu interior é oco como o meu.

Uma pátina verdete toma-lhe a superfície.
Meus braços não foram largos o bastante
para abraçar-lhe como queria.