segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Roque


As peças pendem diferentemente num tabuleiro.
A paridade é quase sempre só aparente.
Os primeiros movimentos encerram em si
todo o desfecho e eu não sei jogar.

Tudo é tão assimétrico,
meus peões todos indefesos.
Não desejo protelar o meu abate.
Não possuo torres para me acastelar.

Tão inabilmente joguei este jogo antes.
Fui transparente em movimentos e intenções.
Não quero mais reproduzir estas jogadas
em minha cabeça ou em meu coração.
Capturo as minhas próprias peças.

Não há vergonha em perder,
em saber os limites do que sei jogar.

sábado, 28 de setembro de 2024

Frestas


O que há de se guardar nas estantes altas?
Tão distante de incautos olhos,
entre caixas, livros e fotografias
pairam vagos vestígios do passado.
Lembranças e lembretes raros,
mas destituídos de espaço próprio
em nossas salas, quartos e camas.

Nossas vidas transbordam além dos limites,
Fluímos em direções novas ou baldias,
mas nada jamais por inteiro se apaga.
Ainda que descasque ou nos sobrepinte,
como tinta de alguma forma perduramos.
Pigmentos presentes, ainda que ressignificados.

É preciso abrir mão do passado,
mas por entre frestas ele sobrevém agridoce
entre instantes e recordações considerados perdidos.
Toda pegada é uma cicatriz.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Telégrafos

 

O cobre encurta as distâncias,
vasculariza as estradas e as cidades
transmitindo em sinais e silêncios
tudo o que precisa ser dito.

Notícias de fortunas feitas e desfeitas,
partidas e chegadas são anunciadas.
Nomes em causas perdidas sendo conscritos.
Tudo sempre tão preciso,
Tudo expresso em tão parcas palavras.

O cerne nem sempre é tudo.
Os envelopes pardos mantém o seu mistério
ao permanecerem fechados.
A rapidez dos telégrafos destronou
as mesuras e a consideração das missivas.

Há sempre tanto a se dizer,
mas as palavras nos são todas contadas.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Velas & Candeeiros


Cera e querosene se sublimam em luz,
mas em fumaça e fuligem também.
Clareiam nossos rotos rostos,
engrandecendo nossas sombras.
O que ilumina nossas mesas
sempre há de escurecer os nossos tetos.

É difícil aceitar a experiência da noite,
sua natureza disforme e imprecisa
multiplicando perigos e medos
enquanto acalenta nossos sonhos.
Congregamo-nos na escuridão,
pele repousando sobre pele,
dedos entrelaçando-se suaves.
Tudo é quase sussurrado.

As estrelas arranham o firmamento,
cometas dilaceram-se para beijar o chão,
engrenagens celestiais atiçam luas e marés.
Eis toda a fúria e a poesia que nos faltam
sob a luz de velas e de tristes candeeiros.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Sílica & Saudade


Por entre minhas mãos escorrem areias
tão finas e alvas que ao vento se desfazem
como as lembranças da iridiscência
das conchas que um dia ousaram ser.

Puídas pelas ondas e as pedras,
presas na circularidade das marés,
chocavam-se umas com as outras
até fragmentarem-se por vez e vez mais.
Um todo feito em partes,
partes feitas em um outro todo difuso.

Por que tudo há de ser tomado de nós?
Os longos dedos do tempo
tamborilam sobre os dias e meses
de nossos finitos calendários.
Por entre que mãos haveremos de escorrer?

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Correntes de Retorno


O tempo sopra
areias contra nós.
Machuca o rosto,
um pesar atroz.
Os ventos dizem
que um menino se afogou,
que aqui não daria pé,
que tudo estava bem
até você chegar.

Vejo faróis
cortando o horizonte.
O sangue e o sal,
o nado mais distante.
Eu ouço gritos
que a maré vai me puxar,
que o barco afundou,
que aqui há o coral
mais belo para morar.

Sob a espuma, há luz
para recomeçar.
Abro as portas e deixo
A onda se arrebentar.
Nunca estive mais só...

E aqui há de ser o meu lugar.
Onde as ondas mais altas
sempre irão se arrebentar.
Jangadas contra o oceano,
Como estrelas na escuridão.
Não tenho mais pernas,
Só asas para desbravar
A imensidão.



sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Algo saiu de lugar


Aonde estariam os eixos
onde tudo deveria estar?
Não sei se sou o alvo ou a flecha,
Algo saiu de lugar.

Em órbitas tão dissonantes
a Terra irá se alinhar.
Além dos pilares do mundo
Os céus irão desabar

Com graça,
Coragem,
Piedade e
Estupidez.

Tudo não foi nada além
de um castelo de cartas
mal marcadas.

Você só está aqui quando convém,
Eu sou riso e você é a estrada.

E está tudo bem.
Está tudo bem.
Está tudo bem,
Só sorria.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Indefinida


O céu ainda se despe do escuro
Para a nudez cerúlea das manhãs.
A terra e os lírios molhados
Exalam imprecisas fragrâncias
Sob a dança dos dias e de meus pés.

Os olhos se voltam para o horizonte,
Para os lânguidos raios a despertar,
Barganhando por mais uns instantes
Para Selene poder a Aurora beijar.

Daqui brotam infinitos,
De onde meus passos estiveram
Até aonde os pássaros estão.
Círculos se interligando
Nos muitos versos de meu quintal.
Um mundo inteiro está mudando,
Quem ouso ser afinal?

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Perto Demais do Ribeirão


O tempo naufraga até mesmo um sertão,
Enferruja o arado e entorta o perdão.
Quantos mais eu hei de enterrar?

Os olhos ardem, queima a plantação.
são tantas bocas para prover o pão.
Quantos mais eu hei de enterrar?

Eu ouço tiros.
Eu sou o alvo.
Cheguei perto demais
do Ribeirão.

Chora, meu córrego,
limpa o meu nome.
Por que é tão difícil morrer?

As mãos de meu filho estão sujas de sangue.
As mãos de meu filho estão sujas de sangue,
mas eu não posso parar ...

---

A minha terra tem partes de mim
Espalhadas do começo ao fim.
Quantos mais eu hei de chorar?

Cruzes na estrada, flores ao portão.
Alguns logo chegam e logo se vão.
Quantos mais eu hei de chorar?

Ainda estou vivo
Mas só em parte
Algo em mim
Eu sei se perdeu.

Chora, meu filho,
a dor do seu nome.
Por que é tão difícil viver?

As mãos de seu filho estarão sujas de sangue.
As mãos de seu filho estarão sujas de sangue,
E não há nada que eu possa fazer ...

---

Cacos e pedras são o que me restou,
Faces tão cavas ornadas de dor.
Outra estrela eu hei de contar.

Tão pouco é dado, tão parco o quinhão,
Mesmo tão perto do Ribeirão.
Outra estrela eu hei de virar.

Está tudo calmo,
Uma noite clara.
Minha força se esvai
Com o Ribeirão.

Chora, meu córrego,
Apaga o meu nome
me leve pra longe daqui.

As mãos de meu pai limpam minhas mãos de sangue.
As mãos de meu pai limpam minhas mãos de sangue
E agora eu posso parar...

---

Eu vejo começos
Suturando os talhos em mim.
Meu sangue é forte.
Ainda estamos tão longe do fim.
Um rio permeia
Meus filhos e minhas veias.
Muito além do Ribeirão
Aqui estou e aqui também estão.

Tudo flui.
Tudo muda,
Só eu mesmo que não.

Bowline Knots


There is a quiet dignity
that sustains the sutures of the everyday.
Stones laid beneath burdens
that silently bear the weight of everything,
the tearing of estranging skins unto each other,
the heaviness hanging above our bending backs,
all things in their right and proper places.

When night arrives,
the affability of the banal
shelters us from everything outside,
from the hateful stars sailing through the night,
from crazy howls echoing between the hills,
from the rain erasing our names and faces,
from the lukewarm taste of blood on our lips.

It must be safe in here.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Nós de Escota


Existe uma dignidade quieta
que sustenta as suturas do cotidiano.
Pedras assentadas sob pesares
que, quietas, tudo suportam.
o dilacerar de peles se estranhando,
o peso curvando-nos as costas,
todas as coisas em seus devidos lugares.

Quando chega a noite,
a afabilidade do banal
protege-nos de tudo que há fora,
das estrelas odiosas singrando a noite,
dos uivos ensandecidos ecoando entre os montes,
da chuva apagando nossos nomes e pegadas
e do gosto morno de sangue em nossos lábios.

Deve ser seguro aqui.