quinta-feira, 27 de junho de 2024

Temperança

 

Eu faço minha morada no amanhã,
Negligencio os afazeres do hoje.
Sempre perseguindo algum cometa,
Alguma estrela cadente
Que, tolo, pensei poder tocar
Como rijos seios de sereia
Congregando com a boca
Em delírio ou deleite.

Tudo isso, eu sei, irá passar.
Estamos presos nessa
Procissão de princípios,
De fins que se intercosteiam
Suturando as dores do mundo,
Compondo um único tecido vivo,
Bendizendo e benfazendo
Os alicerces de meu querer.

Existe precisão além da forma,
Uma razão subordinada ao sentir.
A linha nem sempre é o caminho mais perto.

1 + 1 = 3

Talvez Belo

 

O quadro pende no corredor escuro
Onde poucos transeuntes passam,
Uma decoração sem importância
Para preencher um vazio
Ou mesmo esconder
Alguns fios e falhas.

Sua moldura modesta está gasta
E partindo nas beiradas
Como se rugas fossem
Estampando o puir do tempo
Ao observador incauto.

O vidro acumula poeira
Como se uma névoa se interpusesse
Entre a obra e o mundo,
Cataratas tornando os dias
Leitosos e oblíquos.

A luz difusa revela somente
Vultos e contornos de algo talvez belo,
Uma obra talvez prima
Esquecida entre a monotonia
Do ranger de portas,
Do tocar de telefones,
Das conversas banais
Dos corredores
Dos escritórios
Nos prédios
Dos centros
Das cidades
Onde todos
Estão ocupados demais
Para poderem notar.

Ainda não pude discernir
Em que lado do vidro estamos.

terça-feira, 25 de junho de 2024

Pigmalião


Sombra é a substância do desejo,
a imprecisão que pare formas
que sussurram no silêncio
algo mais intenso que o real.


Mãos calejadas esculpem a pedra
com o cinzel torto de sua estrada
e o martelo pesado de sua história.
Nunca somos verdadeiramente justos.
O outro é sempre tingido por um eu.

Deparo-me com minha obra,
Cansado do labor
e cônscio de não se coadunar,
entre fendas e ângulos,
com as raízes rubras do real.
És algo mais belo do que posso suportar.
A unidade desfeita em cacos
por vez e vez mais,
como um débil demiurgo
continuamente 
trazendo dos primórdios
um mundo à forma 
e em seguida destruindo-o
por nele nunca se encontrar.


Sou falho.
Inconstante.
Indeciso,
mas atento ao outro,
mesmo quando cego
intuo a forma,
Compreendo o valor
pairando distante, além.

Não é justo em pedra o outro aprisionar.
Galatéia não existe além dos cacos.

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Negative Space


Translucent, I hide
like a gentle breeze
caressing leaves and pages
of trees and notebooks
to draw a story
by absence entirely defined.

I am made of holes
and all the fleeting things
that accumulate in the dusty corners
of a desert stricken life.

I am the button of that old shirt,
The book that once was borrowed,
The clippings of never made recipes .
The delicate dedications left unread.

I dwell in the topology of wanting,
Mapping whole oceans of desire.

terça-feira, 18 de junho de 2024

Espaço Negativo


Translúcido, eu me escondo
como uma suave brisa
acariciando folhas
de árvores e cadernos
para desenhar uma história
pela ausência definida.

Sou feito inteiro de buracos
e de todas as coisas fugidias
que se acumulam nos empoeirados cantos
de uma existência desertificada.

Eu sou o botão daquela velha camisa,
O livro que um dia foi emprestado,
Os recortes de receitas nunca feitas,
As dedicatórias delicadas jamais lidas.

Habito na topologia da falta
Cartografando oceanos de querer.

terça-feira, 11 de junho de 2024

Gentileza & Graça


A beleza da porcelana está além
Dos seus pequenos detalhes
Ou mesmo de seus delicados contornos.
Ela tampouco se encontra na pompa
Ou nas circunstâncias que a cercam,
Nas cotidianas conversas que escuta.

É delicada ao toque
E se parte se amparada pelo chão.
Uma existência pautada pelo comedimento,
Algum tipo estranho de graça.

As civilizações vêm e vão,
Mas os fragmentos de suas porcelanas
Contam-nos que houve algo mais
Que o horror da guerra ou a banalidade do mal.

Mesmo passados tantos anos,
Dos cacos é possível intuir a forma
De um todo e um tudo que se perdeu.

A beleza do pássaro
Jaz na natureza fugidia do pouso,
Nos entretempos gentis
Em que suas asas roçam o chão
Como arautos de amantes distantes
Confiando-nos segredos
Ou mesmo alguma doce ilusão.

Argila, quartzo, feldspato, caulino e calor.

Há algo mais do que a soma das partes.

Estas asas hão de rufar novamente.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Like Lighthouses


We are defined by insignificances,
By small sorrows,
By the tiny dimensions of our loves.

It is difficult to look back
Searching for some fleeting fullness.
We are the puzzles scattered on the table,
But also the pieces thrown to the floor.
Incomplete, nonconforming,
Yet still resolute.

We start our lives whole,
But we break and shatter along the way.
The edges become sharp,
So skittish to the delicate touch.

For each door that swings open,
Two or more are shut close.
Like a tie or some slipknot
Tightening the throat to silence,
The days squeeze and drift away from us.

Aging is understanding oneself as ridiculous,
But without the lightness of the laughter.
How is it possible to have achieved so much
And yet so little?

Like lighthouses
We signal our loneliness
In the fierce darkness
So that ships and their crews
May heed and steer clear of us,
From our rough shores,
From our immeasurable pains.

An archipelago of sorrows and regrets.

terça-feira, 4 de junho de 2024

Como Faróis


Somos definidos por insignificâncias,
Pelos pequenos pesares,
Pelas dimensões diminutas de nossos amores.

É difícil olhar para trás
Procurando por alguma plenitude fugidia.
Nós somos o quebra-cabeças espalhado sobre a mesa,
Mas também as peças jogadas ao chão.
Incompletos, inconformes,
Mas ainda assim resolutos.

Começamos nossas vidas inteiros,
Mas partimos e nos quebramos pelo caminho.
As arestas tornam-se pontiagudas,
Tão ariscas ao delicado toque.

Cada porta que se abre,
Outras duas ou mais se fecham.
Como uma gravata ou algum nó corredio
Tensionando a garganta ao silêncio,
Os dias se apertam e se apartam de nós.

Envelhecer é entender-se ridículo,
Mas sem a leveza do sorrir.
Como é possível ter alcançado tanto
E ao mesmo tempo tão pouco?

Como faróis
Sinalizamos nossa solidão
Na escuridão bravia
Para que os navios e seus tripulantes
Se atentem e se afastem de nós,
De nossas costas arredias,
De nossas incomensuráveis dores.

Um arquipélago de dissabores e arrependimentos.